Yalla, Yalla, Abya Yala América Latina ao encontro da Palestina em tempos de genocídio

Escrito num contexto de genocídio, este extenso artigo questiona a forma como a cumplicidade do Estado com o projecto colonial de Israel persistiu sob o senso comum da solução de “dois Estados”, dando destaque à organização popular, ao BDS e à solidariedade Sul-Sul, e instando a uma mudança da indignação simbólica para a acção efectiva.

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Longread by

María Landi
Illustration by Fourate Chahal El Rekaby

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Entre a ambiguidade e as contradições

A complexidade das relações de Abya Yala com a causa palestina exige ir além dos olhares idealizadores ou complacentes e analisá-las com um olhar crítico que permita identificar os desafios e, sobretudo, pensar coletivamente como abordá-los.

Esse olhar crítico pode ter como ponto de partida o papel que desempenharam os países latino-americanos na Comissão Especial da Palestina das Nações Unidas (UNSCOP), que em 1947 discutiu e recomendou a partição para entregar mais da metade do território a um movimento de colonos europeus que levava poucas décadas no país, constituía menos de um terço da população e possuía 6% da terra. Alinhados atrás da liderança dos EUA e dos respectivos lobbies sionistas, os representantes do Uruguai, Guatemala e Peru, como membros da UNSCOP, e do Brasil, desde a presidência da Assembleia Geral da ONU, conseguiram persuadir seus pares latino-americanos a apoiar a partição da Palestina.2

Os países latino-americanos constituíam um terço da recém-criada ONU (que só tinha dois anos de vida e apenas meio centenar de membros); 13 deles votaram a favor da partição3, 6 se abstiveram4 e só Cuba votou contra5. Em um período em que no mundo se iniciavam os processos de descolonização, e a maioria dos países da África e da Ásia se recusava a reconhecer Israel, a América Latina deu seu apoio para a materialização do projeto colonial sionista.6 Como assinala o historiador argentino Miguel Ibarlucía, o caráter dividido da votação evidencia que não foi um consenso mundial, mas uma imposição dos Estados ocidentais — com apoio dos latino-americanos — sobre o mundo árabe, que o rejeitou em bloco.7

Esse apoio à partição se explica por múltiplas razões. Por um lado, a maioria dos países de Abya Yala já levava mais de um século de independência formal; portanto, não tinham o mesmo interesse na descolonização que o resto do Sul Global8 e tinham um grande desconhecimento da questão palestina, do mundo árabe e da região9. Além disso, o lobby da Agência Judaica foi muito efetivo em um Ocidente comovido pelos horrores do nazismo.

Quem se pergunta como é possível que uma região que sofreu cinco séculos de colonialismo europeu em suas formas mais brutais não tenha tido uma visão clara sobre o caráter colonial e racista do Estado que se queria implantar na Palestina, deveria recordar que os novos Estados nacionais foram forjados pelas elites crioulas descendentes dos colonos europeus; e que, como bem tem proposto o pensamento decolonial em Abya Yala10, a colonialidade do poder e do saber segue dominando na política, na sociedade e no conhecimento. Como poderiam os diplomatas latino-americanos da UNSCOP levar em conta os interesses da população palestina originária se pertenciam à elite branca incapaz de sentir empatia pelos povos indígenas de seus próprios países? Talvez por isso, 78 anos depois, a autocrítica por essa votação segue pendente. Como segue pendente — a mais de dois anos de genocídio em Gaza — que a maioria dos Estados latino-americanos revise seus vínculos estreitos de sete décadas com o Estado de Israel.

Outro fator a ser considerado são as características que teve a diáspora palestina em Abya Yala.11 Os estudos sobre este tema são numerosos e não é meu propósito abordá-lo aqui.12 Embora essa diáspora seja diversa, a maior parte da imigração palestina chegou a Abya Yala no final do século XIX e início do XX e era de origem cristã13. Nos países onde se estabeleceu (Chile, Honduras, El Salvador, Venezuela, Guatemala, Colômbia) integrou-se com sucesso à sociedade local, prosperou e alcançou influência significativa na economia, cultura e política. Assim, sua inserção nos estratos burgueses14 fez com que frequentemente se distanciasse da causa palestina — associada à esquerda e à luta armada — e se identificasse com opções políticas de direita, desde o Chile de Pinochet até El Salvador de A. Saca ou N. Bukele (sem esquecer, por contraste, revolucionários como Shafik Handal)15.

Nesses migrantes que saíram da Palestina antes da Nakba e nunca viveram sob a ocupação israelense, o vínculo com a pátria era mais afetivo e cultural que político. No entanto, e como ocorre com outras diásporas, a politização se deu na terceira ou quarta geração, que buscou conectar-se com suas origens por meio da recuperação da língua, da identidade e da memória coletiva, da militância política, do trabalho acadêmico e da literatura. Este processo também está ligado à legitimidade internacional que adquiriu a causa palestina devido à bem-sucedida diplomacia da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) liderada por Yasir Arafat a partir da década de setenta. No caso do Chile, por exemplo, alguns setores dessas gerações impulsionam o movimento BDS — especialmente no âmbito universitário, através da União Geral de Estudantes Palestinos (UGEP) — e articulam seu ativismo com outros movimentos sociais. Esse compromisso se potencializou significativamente na luta contra o genocídio em curso. Ainda assim, Cecilia Baeza assinala o contraste entre a unidade de propósito que guia os lobbies sionistas em torno da agenda de Israel e a disparidade de interesses de classe e ideológicos que existem na diáspora palestina de Abya Yala.

Illustration by Fourate Chahal El Rekaby

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O fantasma israelense rondando entre guerrilhas, ditaduras e
transições

Baeza considera que entre os Estados latino-americanos não tem havido uma orientação geral coerente sobre a questão palestina, pelo qual extrair tendências regionais implica fazer simplificações16. Além de seu voto em 1947, os sucessivos governos buscaram nas décadas seguintes manter uma equidistância pragmática — que tem favorecido a Israel — para balancear os interesses das comunidades judaicas e árabes nacionais, assim como suas relações comerciais com Israel e os países árabes. Por isso, diante de cada crise os discursos dos governos têm optado por condenar a violência de "ambas as partes" e chamar a respeitar o Direito Internacional. Com exceções como Cuba, a Nicarágua sandinista17 e a Venezuela bolivariana18, as relações dos países latino-americanos com a Palestina e Israel estiveram determinadas por seus interesses mutantes e pelo signo ideológico dos governos de turno; embora com exceções, as relações estreitas com Israel têm sido em geral uma política de Estado.

Entre 1947 e 1974, no marco da Guerra Fria e do alinhamento com os EUA, predominou a aproximação dos governos latino-americanos a Israel, embora com nuances significativas segundo o país e a orientação do governo. Não obstante, a incorporação de novos países descolonizados da África e da Ásia à ONU, o surgimento do Movimento dos Países Não Alinhados em 1961, a ocupação israelense dos territórios árabes em 1967 e o embargo da OPEP aos países que apoiaram a Israel na guerra árabe-israelense de 1973, levaram os governos latino-americanos a buscar melhorar suas relações com os países árabes e a mostrar maior apoio à causa palestina. Em 1974, a aceitação da OLP como representante legítimo do povo palestino com status de observador na ONU também contribuiu para uma maior aproximação. A maioria dos países latino-americanos reconheceu a OLP; isso se refletiu na abertura de escritórios da organização em vários países de Abya Yala entre os anos setenta e oitenta: Cuba, Nicarágua, Brasil, México, Peru e Chile.

Paradoxalmente, a partir de 1974, dado que a maioria dos Estados africanos tinha rompido relações com Israel, a América Latina, com governos autoritários e ditatoriais em vários países, se converteu na principal beneficiária dos programas de cooperação israelense, tanto em matéria de modernização agrícola como militar. Desde 1970 até meados dos anos oitenta, as armas foram o principal produto de exportação de Israel para a região.19

Cabe recordar que uma coisa são os Estados e seus governos e outra os povos. De fato, esta diferença se tornou abismal durante o genocídio em curso em Gaza. Nos anos sessenta e setenta, a solidariedade direta entre Palestina e Abya Yala se materializou — por fora e apesar dos governos — entre as organizações guerrilheiras de ambas as regiões.20 O papel de Cuba foi chave nesse período, com iniciativas como a Conferência Tricontinental (1966), que reuniu em Havana movimentos revolucionários dos três continentes do Sul. Dali surgiria a Organização de Solidariedade dos Povos da Ásia, África e América Latina (OSPAAL), cuja revista Tricontinental foi um referencial da visão terceiro-mundista naquela época. Além de desempenhar um papel importante a nível diplomático e político, Cuba facilitou intercâmbios de informação estratégica e treinamento militar entre organizações guerrilheiras do Cone Sul21, Colômbia, América Central e Palestina22. Nesses círculos, via-se a resistência palestina liderada pela OLP como uma luta de libertação nacional e anti-imperialista23.

No entanto, a derrota dos movimentos guerrilheiros em Abya Yala nas décadas de 1970 e 198024 coincidiu com o fim de um ciclo da luta armada palestina, após a transferência forçada da OLP do Líbano para a Tunísia e o processo que levaria Arafat e Fatah a trocar as armas pela diplomacia: a declaração de independência em 1988, a Conferência de Madri em 1991 e os Acordos de Oslo em 1993–199525. Em Abya Yala, o advento de ditaduras e regimes autoritários e brutalmente repressivos que exerceram o terrorismo de Estado desarticulou não apenas militantes e organizações, mas também vínculos e memórias comuns. O destino de grande parte de seus protagonistas foi o assassinato, o desaparecimento forçado, o exílio ou a prisão política prolongada. Estas derrotas deram origem a longos e complexos debates, incluindo um forte questionamento à viabilidade da luta armada entre intelectuais, dirigentes e quadros de importantes setores das esquerdas do continente.26

Israel atuou como proxy (representante) dos EUA para armar, assessorar e treinar em contrainsurgência regimes autoritários e esquadrões da morte, tanto no Cone Sul como na América Central27. Esta aliança estratégica com as ditaduras e suas forças armadas tinha para Israel um interesse tanto político quanto econômico: nos anos oitenta, a região era o destino de um terço das exportações de armas israelenses28. E como assinala o historiador Gerardo Leibner, a colaboração israelense aportava também cobertura político-diplomática e muito provavelmente inteligência29.

Não importava que os regimes ditatoriais fossem explicitamente antissemitas. Por exemplo, a Junta militar argentina acreditava em uma conspiração para criar um Estado judeu na Patagônia, o chamado Plano Andinia. O jornalista Jacobo Timmerman e outras pessoas judaicas foram torturadas porque teriam informação sobre uma suposta invasão do exército israelense com esse fim30. Isso não deteve o apoio que os israelenses ofereciam à ditadura militar argentina, inclusive vendendo-lhe armas durante a guerra das Malvinas31.

Os vínculos militares com Israel foram fundamentais na criação das Autodefesas Unidas da Colômbia e outros grupos paramilitares de extrema-direita, responsáveis por 45% das 400.000 vítimas do conflito interno colombiano32. Carlos Castaño, que foi o máximo líder das AUC, foi um dos jovens colombianos que em 1983 viajaram a Israel para receber treinamento militar33. Paraguai, Guatemala e Honduras mantiveram estreitas relações militares e de inteligência com Israel durante os regimes autoritários dos anos oitenta e nas décadas seguintes. Não por acaso, em 2018 foram os primeiros países a anunciar sua decisão de transferir suas embaixadas para Jerusalém, seguindo os passos de Trump34.

Em meados e finais dos anos oitenta, os povos de Abya Yala estavam demasiado concentrados nos desafios da transição democrática e da luta contra a impunidade do terrorismo de Estado. O interesse pela causa palestina reavivaria após o estouro da primeira intifada no final de 1987 e a crescente simpatia internacional que despertou. A Declaração de Independência Palestina (Argel, 1988) foi outro momento no qual puderam expressar seu apoio. A resolução 43/177 da Assembleia Geral da ONU (1988) que reconheceu dita Declaração foi votada por 10 países de Abya Yala35, embora apenas Nicarágua e Cuba reconhecessem formalmente o Estado Palestino.

Após a saída das ditaduras ou dos regimes autoritários, quase todos os governos da região, tanto conservadores como progressistas (exceto Cuba e Nicarágua), desenvolveram vínculos militares e de segurança com Israel em cinco áreas: armamento, sistemas de segurança, cibersegurança e inteligência e treinamento de forças de segurança para a "luta contra o terrorismo" ou "contrainsurgência". Israel participou nas feiras de armas que se realizam no Brasil, Chile e Colômbia. Piñera foi o presidente chileno que mais tratados assinou com Israel depois de Pinochet, no marco de suas estratégias de controle e militarização da Araucanía ou Wallmapu. Em 2011, um relatório da organização palestina Stop the Wall revelou que o Brasil, sob o Governo do progressista Partido dos Trabalhadores (PT), tinha assinado contratos militares com Israel no valor de cerca de 1.000 milhões de dólares. Isso se refletiu nos métodos, práticas e equipamento utilizados pela polícia e pelo exército brasileiros no suposto combate ao crime organizado nas favelas do Rio de Janeiro, cuja violência teve um altíssimo custo social para a população negra, jovem e favelada36. É por isso que o movimento BDS impulsiona a campanha de embargo militar a Israel buscando conectar a causa palestina com as lutas anticoloniais, antirracistas e antimilitaristas em Abya Yala37.

Illustration by Fourate Chahal El Rekaby

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Os desastres de Oslo e o outro mundo possível?

O levante popular e massivo da primeira intifada seria desarticulado pelo chamado "processo de Oslo", uma armadilha na qual caiu grande parte do povo palestino no território ocupado e na diáspora, assim como seus simpatizantes no mundo. Esse entusiasmo popular e internacional era inevitável, dada a legitimidade que lhe outorgava a liderança de Arafat.

As vozes críticas e seus avisos não foram escutados (desde Edward Said, que qualificou os Acordos de Oslo de "Versalhes palestino", até 10 partidos islamistas e marxistas). Não se viu ao "processo de paz" como o que realmente era: uma artimanha38 para desarticular a intifada e obrigar os oprimidos a negociar sua liberdade com seus opressores sob os auspícios de uma potência imperial (EUA), que podia ser qualquer coisa menos um mediador honesto, dado seu apoio histórico e incondicional a Israel39.

As consequências do processo de Oslo foram múltiplas e trágicas para o povo palestino. É certo que os Acordos permitiram o regresso de muita gente exilada (incluído Arafat), que a Autoridade Palestina (AP) assumisse a gestão autônoma da educação e outros assuntos públicos (embora liberando a Israel de suas responsabilidades como potência ocupante) e impulsionasse o trabalho diplomático na ONU; mas geraram uma percepção enganosa, já que a dominação israelense ficou camuflada atrás de uma fachada de autogoverno palestino. Além disso, o principal mandato que recebeu a AP foi garantir a segurança dos colonos israelenses no território ocupado, colaborando com Israel para reprimir a resistência de seu próprio povo40. A assinatura dos Acordos também gerou uma onda de legitimidade e de reconhecimentos a Israel por parte de muitos países árabes, muçulmanos e do Sul global.41

Não menos perniciosa foi a armadilha epistêmica que Oslo produziu em boa parte da política, da opinião pública, da academia e do campo da solidariedade em todo o mundo. Não só pela crença falaz de que o processo levaria a criar um Estado Palestino, mas também porque instalou um paradigma enganoso que perdura até hoje: o de "as duas partes" que devem negociar uma solução pacífica ao "conflito", ocultando assim a assimetria de poder e de responsabilidade entre ambas. No Cone Sul conhecemos esta distorção que põe em pé de igualdade ao opressor e ao oprimido — neste caso, ao colonizador/ocupante e ao colonizado/ocupado — como 'teoria dos dois demônios'42.

Com a instalação deste falso paradigma, a conceituação da luta de libertação nacional e anticolonial ficou no esquecimento ou relegada às margens. Por sua vez, a renúncia de Arafat às armas e seu partido Fatah trouxe como consequência a deslegitimação da luta armada. A isso contribuiu que, em resposta ao massacre de 29 palestinos enquanto rezavam uma sexta-feira de Ramadã na mesquita Ibrahimi de Al Khalil (Hebron), em fevereiro de 1994, Hamas e a Jihad Islâmica começaram uma onda de atentados suicidas em território israelense que durou vários anos e danificou a imagem da causa palestina no Ocidente. Após os ataques às Torres Gêmeas em 2001 e a Guerra contra o Terrorismo lançada pelos EUA e seus aliados, e com a segunda intifada em curso, foi muito fácil converter a resistência palestina em "terroristas".

Esta satanização se deu não só na opinião pública, nos meios hegemônicos e nos governos, mas também em boa parte das esquerdas — também em Abya Yala. O islamismo não é facilmente aceito em um continente onde as massas populares são cristãs43 e as esquerdas seculares desconfiam de qualquer expressão religiosa. Por sua vez, a mera existência da AP e seu dócil presidente que reivindica a representação da OLP determina quem são os palestinos 'bons' e quem são os 'maus'. Hoje parece que não se pode falar do genocídio sem antes condenar "o terrorismo do Hamas"; do contrário se enfrenta a desqualificação ou a ameaça de criminalização por "apoiar terroristas". Resta dizer que essas condenações vêm de quem nunca condenou o terrorismo do Estado israelense e repetem clichês sem saber nada sobre a resistência palestina nem sobre o Hamas; mas também de amplos setores das esquerdas.

Oslo teve outra consequência: as embaixadas palestinas que se abriram em muitas capitais da região passaram a ser o principal referencial — ou o único — para os grupos de solidariedade, os governos e a sociedade em geral. O aparecimento deste novo ator político distorceu a trajetória de solidariedade latino-americana com a luta de libertação palestina, e tem tido mais impacto em uma região onde as oportunidades de encontro e intercâmbio direto com ativistas da Palestina são muito menores que no hemisfério Norte, devido a limitações econômicas e geográficas. Junto à barreira do idioma, isso reduz as possibilidades de conhecer outras vozes e visões palestinas — em particular das novas gerações — distintas do discurso oficial da AP.

Os Acordos de Oslo — que resultariam em 30 anos de retrocesso para a causa palestina — foram assinados no contexto do desaparecimento do bloco soviético, do fim da Guerra Fria e da crise das utopias socialistas em sentido amplo. Em Abya Yala coincidiram com a "década perdida" da era neoliberal (sem esquecer a derrota do sandinismo nas eleições de 1990 e a deriva de crise e fratura que se seguiria). Apesar da surpreendente exceção que significou o levante zapatista em Chiapas (1994)44, o avanço das forças retrógradas e do capitalismo neoliberal com seus programas privatizadores parecia impossível de frear. Na era da hegemonia estadunidense e do "fim da História", a tirania do pensamento único servia para impor "um colonialismo global (...) neoliberal e pós-moderno (...) uma recolonização."45

O começo do século XXI esteve marcado pelo estouro da "segunda intifada" na Palestina; o que começou como uma revolta popular derivou rapidamente em um confronto militar sangrento devido à desmedida violência com que responderam as forças israelenses, e concluiu em uma derrota avassaladora da resistência palestina. Paradoxalmente, em Abya Yala foi a década do renascer da esperança; sua expressão concreta foi o Fórum Social Mundial (FSM), realizado pela primeira vez em Porto Alegre (Brasil) em janeiro de 2001 — em contrapartida ao Fórum Econômico de Davos — e durante os anos seguintes. Esses encontros cada vez mais multitudinários e globais sob a palavra de ordem "Um outro mundo é possível" — inspirada sem dúvida na do movimento zapatista: "Um mundo onde caibam muitos mundos"46 — rompiam com a tirania do pensamento único neoliberal e convocavam os movimentos populares a construir novas utopias de mudança. A partir de 2004 o FSM se celebrou em diferentes continentes, e também se organizaram fóruns regionais ou temáticos em todo o mundo47.

A causa palestina esteve presente desde o primeiro FSM, embora não isenta de tensões, devido a que — enquanto a Palestina estava imersa na segunda intifada — o FSM se definia em sua  Carta de Princípios como um espaço não violento que rejeitava a luta armada. E embora a participação palestina no FSM fosse muito diversa, ficou claro que o debate sobre a legitimidade da luta armada não era fácil em Abya Yala, onde muitos movimentos sociais tinham (e têm) uma valoração crítica sobre algumas experiências guerrilheiras das décadas anteriores (ver a nota de rodapé 25). A isso se somava que, como já vimos, as operações suicidas e o estigma do terrorismo instalado desde o ataque às Torres Gêmeas projetaram uma imagem internacional negativa da resistência palestina; e Abya Yala não foi a exceção.

A primeira década do século XXI na região esteve marcada pela ascensão de governos considerados de esquerda, progressistas ou de centro: Hugo Chávez na Venezuela (2000), Lula da Silva no Brasil (2003), Néstor Kirchner na Argentina (2003), Tabaré Vázquez no Uruguai (2005), Evo Morales na Bolívia (2006), Oscar Arias na Costa Rica (2006), Cristina Fernández na Argentina (2007), Daniel Ortega na Nicarágua (2007), Fernando Lugo no Paraguai (2008), Mauricio Funes em El Salvador (2009), José Mujica no Uruguai (2010) e Dilma Rousseff no Brasil (2011).

Neste período, e sobretudo sob a liderança de Lula da Silva, os governos sul-americanos buscaram articular uma política regional mais independente da influência estadunidense. Isso se traduziu em iniciativas como a UNASUL (2008) e a CELAC (2010)48 como alternativas à OEA, um organismo historicamente controlado pelos EUA e por isso desprestigiado49. O Brasil impulsionou uma maior aproximação aos países árabes, muçulmanos e do Sul global em geral. Um exemplo desses esforços foi a primeira cúpula América do Sul-Países Árabes (ASPA) convocada em Brasília em 2005 para promover o intercâmbio comercial e político, assim como a cooperação técnica e científica entre os países da UNASUL e da Liga Árabe50.

Os governos progressistas expressaram seu apoio à causa palestina em diferente grau. Na segunda década do século, 16 países latino-americanos tinham reconhecido o Estado palestino51, e vários deles abriram embaixadas ou escritórios diplomáticos em Ramala. No entanto, estas aproximações à Palestina se deram com um cuidado por expandir também as relações com Israel, buscando sempre a 'equidistância'. Por exemplo, em 2007 os países do Mercosul (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), três deles com governos progressistas, assinaram um tratado de livre comércio com Israel. Dezoito anos depois e com o genocídio em curso, nem governos nem movimentos sociais da região têm impulsionado a suspensão do acordo.

O Brasil é um exemplo eloquente: os governos do PT, enquanto intensificavam a diplomacia e a cooperação econômica com a Palestina (cerca de 30 milhões de dólares entre 2006 e 2012), também aumentaram a compra de armas de Israel. Desde 2000, as empresas militares israelenses começaram a se tornar fornecedoras fundamentais da polícia e das forças armadas brasileiras, com a Elbit Systems à frente. A partir de 2010, a compra de drones israelenses se utilizou para a militarização das favelas brasileiras e durante a Copa do Mundo de Futebol de 201652. Isso não impediu que em 2015 a presidenta Dilma Rousseff rejeitasse Dani Dayan (líder do movimento de colonos na Cisjordânia) como embaixador no Brasil.

Estas contradições se viram nas anteriores ofensivas israelenses sobre Gaza: em 2009, durante a operação Chumbo Fundido, só a Bolívia de Morales e a Venezuela de Chávez romperam relações com Israel. Em 2014, durante a mais cruenta operação Margem Protetora, embora alguns governos de Abya Yala levantaram suas vozes de condenação um pouco mais fortes que os europeus, e cinco deles retiraram temporariamente seus embaixadores de Tel Aviv (Brasil, Chile, Peru, Equador e El Salvador), nenhum rompeu relações com Israel.

Entre as décadas de 2010 e 2020, os setores conservadores voltaram ao poder em vários países de Abya Yala. Isso freou ou fez retroceder o compromisso com a causa palestina. A era de Bolsonaro no Brasil é o melhor exemplo desse retrocesso: após chegar ao poder com o apoio dos setores evangélicos sionistas nucleados na "bancada da Bíblia" do Congresso, Bolsonaro se alinhou com os EUA e ratificou o reconhecimento de Trump a Jerusalém como capital de Israel (embora por pressões dos países árabes, que são importantes sócios comerciais do Brasil, não concretizou o anunciado traslado da embaixada). Nos primeiros meses de seu governo assinou seis acordos com Israel sobre segurança pública, defesa, ciência e tecnologia. Em 2017, Netanyahu se converteu no primeiro chefe de governo israelense a visitar a região: Argentina, Colômbia e México (sob os governos direitistas de M. Macri, J.M. Santos e E. Peña Nieto respectivamente); e em 2019 foi o primeiro a visitar o Brasil de Bolsonaro.53

Paradoxalmente, a segunda década do século também esteve marcada pelo desenvolvimento do movimento BDS em Abya Yala. Conseguiu-se impulsionar campanhas exitosas de boicote esportivo e cultural para evitar a viagem de jogadores e artistas a Israel (na Argentina, Brasil e Uruguai), campanhas de boicote acadêmico (na Argentina, Brasil e Colômbia), contra a penetração da empresa Mekorot (Argentina, Uruguai, Brasil), contra a multinacional mexicana CEMEX (Colômbia, México), contra ISDS e Elbit (Brasil). A campanha Espaços Livres de Apartheid e a celebração anual da Semana contra o Apartheid Israelense cresceram em vários países da região. O movimento realizou dois encontros regionais (Santiago do Chile, 2017 e Rio de Janeiro, 2018), uma turnê política de Roger Waters por vários países (2018), o relatório sobre o militarismo israelense em Abya Yala (2018), e seguiu buscando articular as campanhas de BDS com as lutas de movimentos antirracistas, sindicais, ambientalistas e indígenas do continente54.

No entanto, na segunda década do século o campo pró-Palestina não teve capacidade de resistir aos avanços do lobby sionista nem de responder com contundência a outras calamidades desses anos, como os reiterados assaltos às Flotilhas da Liberdade a partir de 2010, a escalada mortal de 2015 na Cisjordânia e Al Quds (durante a chamada Intifada das Facas), os massacres da Grande Marcha do Retorno em Gaza (2018-2019), os anúncios de anexação e os Acordos de Abraão (2020), e tampouco a agressão de 2021 a Gaza em resposta à Intifada da Unidade.

Também não se avançou na legitimidade da causa palestina e a deslegitimação de Israel após os relatórios sobre o apartheid israelense que se sucederam a partir de 2021: os de B'Tselem, Human Rights Watch, Anistia Internacional e muitos mais. De fato, em AbyaYala — como no resto do mundo - a visibilidade e o interesse pela luta palestina estavam em um ponto muito baixo antes do 7 de outubro de 2023. Mais uma vez, a mensagem que o mundo dá ao povo palestino é que só o leva a sério quando empunha as armas ou quando o regime israelense o assassina aos milhares.

Illustration by Fourate Chahal El Rekaby

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Quanto o genocídio nos mudou?

A mais de dois anos de genocídio televisionado, só os governos da Bolívia, Colômbia, Nicarágua e Belize romperam relações diplomáticas com Israel55; o Chile cortou relações militares e a Colômbia suspendeu a venda de carvão.56 O resto não passa do plano declarativo, igual aos governos ocidentais; e como eles, seguem repetindo o mantra de "os dois Estados", como se tratasse de uma fórmula mágica que porá fim a todos os problemas. Parecem ignorar que 145 países da ONU já reconheceram o Estado Palestino sem que nada mude; e que só o isolamento internacional e as sanções podem obrigar Israel a pôr fim à ocupação colonial e tornar possível a verdadeira autodeterminação da Palestina.

No entanto, é indiscutível que desde o 7 de outubro de 2023 alguns governos latino-americanos deram passos na direção correta --embora insuficientes--. Seis países da região já se somaram formalmente à acusação por genocídio apresentada pela África do Sul perante a Corte Internacional de Justiça (CIJ): Nicarágua, Cuba, Colômbia, México, Chile e Brasil. Além disso, dos oito países que conformam o Grupo de La Haya, a metade são latino-americanos: Cuba, Honduras, Bolívia e Colômbia.57 Impulsionado pela Internacional Progressista, o Grupo foi criado em janeiro de 2025 para trabalhar pelo cumprimento dos mandatos da Corte Penal Internacional, da CIJ (em particular a Opinião Consultiva de 19.7.24) e da AGNU (A/RES/ES-10/24, 18.9.24), que ordenam aos Estados membros tomar medidas efetivas para acabar com a impunidade de Israel.

Em julho de 2025 o Grupo reuniu 30 países em uma Conferência Ministerial de Emergência auspiciada por seus copresidentes África do Sul e Colômbia. O encontro culminou com a Declaração de Bogotá, mediante a qual 13 países (5 deles de Abya Yala58) se comprometeram a adotar seis medidas para impedir o fornecimento e transporte de armas, iniciar uma revisão urgente dos contratos públicos com Israel e impulsionar sua prestação de contas aplicando a jurisdição universal e o direito internacional59.

Em Abya Yala, igual que no resto do mundo, o interesse e a simpatia popular pela causa palestina cresceram enormemente desde o 7 de outubro de 2023. As marchas, mobilizações, performances, palestras informativas e campanhas se multiplicaram em todas as partes. Em todos os territórios a solidariedade histórica se enriqueceu com o aparecimento de novos coletivos, redes e iniciativas encabeçadas sobretudo por jovens.60 Um exemplo significativo é o surgimento de novos coletivos judaicos antissionistas.61 Também os movimentos indígenas de Abya Yala abraçaram a causa palestina e a denúncia do genocídio.62

Uma iniciativa potente foi a Ação Global Feminista pela Palestina, através da qual organizações e coletividades feministas --respondendo ao chamado de suas parceiras palestinas—se puseram de acordo em colocar o genocídio e a resistência das palestinas no centro das mobilizações do 25 de novembro (Dia Internacional contra a Violência às Mulheres) de 2023 sob a palavra de ordem: "De Abya Yala a Palestina: resistência feminista". Articulando-se através de redes e grupos virtuais se concordou um Manifesto que foi lido nas marchas multitudinárias de toda a região. Embora tenha sido difícil sustentar essa articulação, a luta contra o genocídio e pela Palestina chegou ao espaço feminista e de dissidências sexuais para ficar. Isso pôde se ver nas marchas e atividades do 8 de Março, assim como na do Orgulho63.

De fato, as tentativas da propaganda sionista de penetrar os espaços feministas e de diversidade sexual com o discurso sobre a ameaça do islamismo patriarcal e homofóbico, ou as falácias sobre a violência sexual usada como arma de guerra em 7 de outubro de 2023, não tiveram sucesso. Mais ainda, estas tentativas de cooptação permitiram iniciar reflexões sobre a incompatibilidade entre feminismo e sionismo, ou entre quem diz defender os direitos das dissidências sexuais enquanto cometem, justificam ou negam o apartheid e o genocídio.

Por contraste com a mobilização de base criativa e constante, as respostas mais orgânicas e institucionais não estiveram à altura da situação; os sindicatos da saúde, da educação e do jornalismo se pronunciaram pouco e tardiamente contra a matança de seus colegas gazanos. As centrais sindicais dos países do Mercosul, por exemplo, condenaram o genocídio, mas suas respostas foram mornas e não foram acompanhadas de iniciativas para suspender o tratado de livre comércio do bloco regional com Israel e cortar os laços de cumplicidade de governos, empresas e instituições, nem estreitaram relações de solidariedade com os sindicatos palestinos. Como assinalou o ativista espanhol Santiago González Vallejo, a tônica tem sido a abundância de expressões de solidariedade e a ausência de ações efetivas contra Israel.

Ainda assim, após mais de dois anos de mobilização, a exigência de ruptura de relações diplomáticas, comerciais e militares com Israel segue ganhando consenso e é um clamor crescente na região. Isso coincide com um crescimento significativo do movimento palestino e global do BDS, que em julho completou 20 anos. Suas reclamações históricas têm ganho legitimidade graças às resoluções da CIJ, da AGNU, dos mecanismos especiais do Conselho de Direitos Humanos (sob a liderança da Relatora Especial Francesca Albanese) e dos relatórios sobre o genocídio da Comissão Internacional Independente de Investigação e de organizações como Anistia Internacional, Human Rights Watch e B'Tselem, entre outras.

Em uma dúzia de países de Abya Yala existem grupos do BDS articulados em torno de diferentes campanhas e iniciativas. Na Colômbia, o coletivo Tadamun Antimili tem conseguido avanços significativos que se viram potenciados pela Assembleia do BDS realizada quando o Grupo da  Haya se reuniu em Bogotá e o chamado amplo dos movimentos sociais colombianos somou-se ao BDS. No Brasil conseguiu-se vincular a causa palestina com movimentos camponeses, antirracistas e de favelados que lutam contra a violência estatal, e assim juntos exercer pressão para que o Governo de Lula rompa relações diplomáticas, comerciais e militares com Israel. Em 2024, o BDS Brasil e seus aliados conseguiram que o Governo cancelasse a compra de obuses Atmos 2000 à empresa militar israelense Elbit Systems.

A resposta do mundo acadêmico em rejeito ao academicídio de Gaza tem sido desigual nos diferentes territórios. Na Bolívia, Chile, Brasil, Colômbia, Porto Rico e México houve acampamentos estudantis para terminar com a cumplicidade das universidades com Israel; o coletivo mexicano Académicxs com Palestina tem impulsionado iniciativas na linha do boicote acadêmico; o Centro de Investigação e Docência Econômicas (CIDE) e El Colegio de México cortaram vínculos com as universidades israelenses64. No Brasil, a Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Universidade Federal do Ceará (UFC) e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) cancelaram todos seus acordos com universidades israelenses65. No Uruguai, a Universidade da República (UdelaR) pediu ao Governo que feche um Escritório de Inovação na Universidade Hebraica de Jerusalém e anunciou que não participará em nenhum projeto vinculado a ela. E a Central única de trabalhadores/as apoiou a resolução da UdelaR66.

O Grupo de Trabalho Palestina-América Latina do Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO) foi criado em 2019 "para dar maior visibilidade à questão palestina e às formas de resistência em comum com outros povos através da pesquisa e dos aportes conceituais". Publicou a revista Al Zeytun  e alguns dossiês especializados, além de incluir a questão palestina em alguns de seus cursos regulares, como no de Epistemologias do Sul. Nestes dois anos tem funcionado mais como um espaço de intercâmbio de informação sobre as atividades e publicações de seus integrantes, mas não tanto como um âmbito de articulação estratégica para impulsionar o boicote acadêmico na região. No marco da X Conferência do CLACSO (junho 2025, Bogotá), o Grupo organizou o fórum "Palestina, a causa do Sul Global" que incluiu três painéis temáticos.

Por último, embora desde Abya Yala se tenha acompanhado a peripécia da Flotilha Global Sumud, a participação na iniciativa foi limitada por razões econômicas e de distância geográfica. Só alguns países puderam enviar delegações significativas (México, Brasil, Argentina); outros (Uruguai, Chile, Colômbia) estiveram representados por ativistas que vivem ou estavam na Europa.

Illustration by Fourate Chahal El Rekaby

Illustration by Fourate Chahal El Rekaby

Desafios pendentes (e urgentes)

Até o 6 de outubro de 2023, a causa palestina parecia relegada às margens e inclusive ao esquecimento em Abya Yala e no mundo. Um exemplo disso é que no 15 de maio a comemoração dos 75 anos da Nakba passou quase despercebida. Mas tudo mudou uns meses depois, quando a resistência palestina rompeu o cerco da prisão de Gaza para nos recordar que a falsa pacificação que o império propõe para a região da Ásia Ocidental nunca será viável ignorando o povo palestino. A indômita Gaza, que sempre foi o berço da rebelião palestina, está pagando um preço demasiado alto para escrever o capítulo mais dramático mas talvez decisivo de sua luta de libertação.

O projeto sionista de extermínio nunca esteve tão perto de se realizar.67 Mas ao mesmo tempo, em mais de um século de resistência a causa palestina nunca recebeu um apoio mundial de tal magnitude, sustentado durante dois anos pela indignação coletiva ante a cumplicidade dos poderosos com o genocídio. Também em Abya Yala; embora este impulso de solidariedade popular coincida com uma época de fragmentação e desunião na região (em comparação com a era da UNASUL), onde a luta anti-imperialista e pró-Palestina se vê afetada pelos avatares e vaivens eleitorais, o avanço das direitas e o novo intervencionismo da segunda era Trump.

Os povos, e especialmente os do Sul global, temos o desafio de ir além do "consenso da ONU" que é produto do sistema mundial criado em 1945 e hoje está imerso em sua pior crise de legitimidade pelo genocídio de Gaza. Isso não significa de modo algum desestimar a arquitetura do Direito Internacional, mas ao contrário: defendê-la porque é fonte de legitimidade moral e legal para reivindicar os direitos do povo palestino e de todos os povos oprimidos.68 Mas implica reconhecer que esse "consenso da ONU" é um espartilho que impede ver a realidade tal qual é e ser capaz de imaginar opções mais justas, realistas e criativas, inclusive além do modelo ocidental do Estado-Nação.

Em Abya Yala, isso implica abordar uma série de desafios; tentarei esboçar alguns, reconhecendo a diversidade de sujeitos e responsabilidades em jogo.

Sair da armadilha epistêmica 

As resoluções 181 (1947) e 242 (1967) da ONU, assim como o paradigma de Oslo, interpretam a questão palestina como um conflito entre dois povos. No entanto, como assinala o historiador Jorge Ramos Tolosa,69 há uma tendência cada vez mais estendida a analisar a questão palestina como um típico caso de colonialismo de assentamento ou de povoamento (settler colonialism), cuja premissa é a eliminação da população nativa. Isso é chave para entender que a origem do problema está no sionismo como ideologia e projeto político colonialista, racista e supremacista, surgido na Europa no final do século XIX ao calor dos projetos nacionalistas da época plasmados nos modernos Estados-nação.

Em que processo de descolonização ou libertação do último século (Argélia, Vietnã, Angola, Moçambique, África do Sul) se propôs a divisão do território para dar uma parte --a maior parte-- aos colonizadores e outra aos nativos colonizados? Se os Estados não podem ou não querem ir além do modelo da partição e de suas injustas e ilegítimas "fronteiras de '67"70, os povos do Sul estamos convocados a lutar junto ao povo palestino pela libertação de toda a Palestina e do conjunto de sua população, não só os cinco milhões e meio que vivem nos territórios ocupados em 1967 (Cisjordânia, Gaza, Jerusalém), mas também os quase dois milhões que vivem sob o apartheid nos "territórios de '48", e em especial os seis ou sete milhões de pessoas que constituem a metade do povo palestino e vivem miseravelmente e sem direitos nos campos de refugiados dos países vizinhos ou exiladas em todo o mundo. Trata-se de quatro gerações palestinas cujo direito ao retorno está sendo violado desde 1948 e tem sido sonegado em todas as negociações baseadas no esquema de Oslo, até hoje.

Isso supõe também entender que o reconhecimento do Estado palestino sem a libertação de seu povo é uma ilusão. Supõe, em definitivo, recuperar o paradigma que nunca devemos perder de vista: o da descolonização da Palestina e o desmantelamento do regime de apartheid; ou, como diz Hamza Hamouchene, "passar a tocha da luta anticolonial". Superar o paradigma de Oslo supõe reafirmar que a causa palestina é uma luta de libertação nacional, anti-imperialista e antifascista; e supõe conectar sua luta com as lutas indígenas, antirracistas e anticoloniais de Abya Yala, como é o caso da luta do povo haitiano.

Palestina na educação formal e popular

A enorme ânsia que surgiu em Abya Yala por conhecer a questão palestina apresenta novos desafios não só para produzir mas --sobretudo-- para socializar e democratizar o conhecimento. É necessário aproveitar o interesse e ampliar os espaços que se abriram na sociedade civil e no ensino formal. Também a nível universitário, onde existe uma realidade muito diversa em relação aos estudos sobre a Palestina e a região do Levante ou Ásia Ocidental71.

Uma experiência que poderia servir de modelo é a das cátedras livres de Estudos Palestinos Edward Said que existem em várias universidades da Argentina.72 Ao depender da Secretaria de Extensão de uma faculdade (em geral a de Filosofia e Letras), estas cátedras combinam a pesquisa e a docência acadêmicas com a divulgação para a comunidade, mediante cursos presenciais ou virtuais em centros de formação docente e organizações sociais. A longa experiência destas cátedras poderia ser aproveitada para capacitar docentes e instituições secundárias e terciárias de outros lugares que carecem dessa formação especializada.

Outro desafio sempre presente é dialogar os estudos sobre a Palestina com os estudos decoloniais, os estudos indígenas e os estudos críticos sobre racismo. Como assinalou Gabriel Sivinian, coordenador da Cátedra Edward Said da Universidade de Buenos Aires (UBA), os estudos pós-coloniais e decoloniais deveriam tomar a questão da Palestina com caráter central, dado que esse campo de estudo se inspira em grande parte no trabalho de Edward Said: «É uma operação epistêmica um tanto peculiar tomar Said e não tomar a questão da Palestina. No entanto, embora alguns intelectuais decoloniais tenham escrito sobre isso, em termos gerais não é a regra.»73

Superar a maldição de Babel

A barreira do idioma nos separa tanto quanto a geografia, pois Abya Yala não é uma região anglófona nem arabófona. Devemos reconhecer que a maior parte do trabalho palestino de incidência e construção de redes fora do mundo árabe tem se focado na Europa, América do Norte e no Sul anglófono, mas não priorizou desenvolver relações com Abya Yala (com exceções como Stop the Wall, o movimento BDS ou recentemente o Palestine Institute for Public Diplomacy). Por isso seria importante realizar investimentos e esforços sustentados de tradução (com apoio financeiro do Norte), tanto desde Abya Yala como desde a Palestina.

Esta barreira é também de conhecimento e tem muitas facetas; superá-la permitiria, entre outras coisas:

  • manter um diálogo direto e fluido entre ativistas de Abya Yala e da Palestina mediante intercâmbios virtuais ou presenciais, tanto para conhecer as respectivas realidades como as experiências comuns74;
  • acessar abundantes recursos de informação e análise de qualidade sobre a questão palestina que só estão disponíveis em inglês (ou árabe)75; e também poder conhecer as vozes críticas e interpelantes da nova geração palestina, que costuma escrever em inglês, mas muito pouco se traduz ao castelhano ou português76;
  • ampliar o horizonte para redes de solidariedade e interconexão global que permitam um verdadeiro intercâmbio e aprendizado mútuo de saberes, práticas, experiências e reflexões para construir uma solidariedade Sul-Sul que não esteja mediada pelo Norte77.

Pôr os pés na terra (palestina)

Nós, que vivemos essa experiência, temos a convicção de que o conhecimento em primeira mão da realidade palestina e o encontro com seu povo em sua própria terra não podem ser substituídos por leituras, estudos, documentários e outras fontes de informação. Sabemos o que este desafio supõe nesta parte do mundo, onde não existem subsídios nem muita capacidade de poupança, e as pessoas ativistas --a diferença ao hemisfério Norte-- trabalhamos por diferentes causas de forma inteiramente voluntária, frequentemente enfrentando a precariedade e o múltiplo emprego78.

Por isso é necessário buscar formas coletivas e solidárias de viajar à Palestina. Uma prova de que é possível é a longa tradição que existe em Abya Yala de brigadas de solidariedade a Cuba, Nicarágua, Chiapas e outros lugares para apoiar na colheita de cana, café ou laranjas, ou para oferecer acompanhamento internacional em comunidades ameaçadas pela militarização. Ativistas de Abya Yala poderiam se somar às brigadas solidárias que cada ano chegam de todas as partes à Palestina para apoiar na colheita da oliveira, dado que se trata de um período crítico para o sustento das famílias e comunidades, e por isso os colonos intensificam todas as formas de violência sobre elas.

Os encontros com a realidade palestina podem se dar de diferentes formas:

  • delegações para conhecer e apoiar projetos nas comunidades, inclusive a colheita ou plantação de oliveiras (como têm feito o MST do Brasil ou Amigos da Terra);
  • estadias prolongadas, participando em programas de acompanhamento internacional nas comunidades mais ameaçadas pela violência de soldados e colonos israelenses;
  • diversas modalidades de intercâmbio e aprendizado mútuo, como residências artísticas ou estágios em instituições culturais, acadêmicas ou de direitos humanos, cooperação técnica em comunidades vulneradas, voluntariado em campos de refugiados, etc.

Conhecer mais para entender melhor a política palestina

Em uma conjuntura como a atual, em que a questão da representatividade e da legitimidade estão mais questionadas que nunca na Palestina79, é imprescindível analisar criticamente as relações com os distintos atores políticos palestinos, além das embaixadas da AP. É necessário se informar sobre a história do processo político palestino, seus diferentes períodos, atores e posicionamentos, especialmente antes e depois de Oslo e a criação da AP. Igualmente importante é analisar as pesquisas de opinião da sociedade palestina para conhecer a evolução de suas preferências políticas e a legitimidade de cada ator, em uma sociedade que leva 20 anos sem realizar eleições. E não devemos esquecer que a representatividade oficial outorgada pela comunidade internacional à AP de Abbas é resultado de que as potências ocidentais se negaram a reconhecer a vitória eleitoral do Hamas em 2006.

É necessário também insistir na diferença entre terrorismo e resistência, combater a estigmatização e educar a opinião pública sobre o legítimo direito do povo palestino --reconhecido pela própria AGNU80-- a se defender e resistir por todos os meios possíveis (incluindo as armas) à dominação colonial e ao apartheid, e lutar por sua autodeterminação.

Por tudo isso, é necessário ampliar a interlocução com uma pluralidade de vozes da sociedade palestina: partidos de esquerda, sindicatos, grupos de direitos humanos, organizações rurais, feministas, ecologistas, queer, jornalistas, artistas, intelectuais, e em particular a juventude, que costuma ser independente das filiações tradicionais e tem outras formas de fazer política.

Reconhecer a "santidade" da Terra

Este título deliberadamente provocador é um convite a superar o preconceito antirreligioso --dominante em grande parte da esquerda agnóstica ligada à causa palestina-- que impede compreender a espiritualidade arraigada na maior parte do povo palestino. Isso não implica interpretar erroneamente a questão palestina como um conflito de raiz religiosa. Mas não se pode ignorar o peso dos aspectos subjetivos nessa terra considerada sagrada pelas três religiões monoteístas. Uma simples caminhada pela Cidade Velha de Al Quds permite percebê-lo. De que outra maneira podemos entender o poderoso valor simbólico que tem o complexo do Haram al-Sharif (a Esplanada das Mesquitas) para o povo palestino, que provoca intifadas e lançamentos de foguetes desde Gaza quando é ultrajado?

Atender à dimensão religiosa também ajuda a compreender a ideologia messiânica do movimento de colonos fanáticos que hoje detêm o poder, o que os impele a querer construir o Terceiro Templo sobre as ruínas da mesquita de Al Aqsa, assim como suas motivações ideológicas para se apropriarem da parte mais 'sagrada' do território palestino: a Cisjordânia, à qual chamam pelo nome bíblico de "Judeia e Samaria".

Tampouco basta dizer que o projeto sionista instrumentalizou a religião para justificar sua conquista e apropriação da Palestina. Não basta porque a dimensão religiosa está presente na vida cotidiana do povo palestino, em sua cosmovisão, em sua inexplicável resiliência, na motivação de sua luta e em sua certeza da vitória final. Quantas vezes, ante a demolição de suas casas, a destruição de suas oliveiras, a matança de suas ovelhas e cabras, a execução ou a prisão de seus entes queridos, ao perguntar de onde tiram a força para resistir, nos responderam, erguendo o olhar e a mão: "De Allah."

A fé está na raiz de sua esperança tenaz e na essência daquilo tão difícil de traduzir que é o espírito de sumud; é o que explica sua paciência ancestral e sua resistência de um século ao sionismo. Como podemos entender estes 26 meses em Gaza sem essa força interior? Como ler os testamentos de jornalistas como Hossam Shabat ou Anas Al-Sharif? Que força interior mobiliza em um povo a certeza do martírio como semente de libertação?81

A rejeição a considerar a dimensão religiosa tem outras consequências. Uma delas é o preconceito para com a resistência islamista --que costuma andar de mãos dadas com a islamofobia--, um tema que nestes dois anos tem dividido as esquerdas do Ocidente e gerado debates acalorados (debates em boa medida estéreis tendo-se em conta que em Gaza todas as facções armadas, desde as islamistas até as marxistas, coordenam sua ação na "Sala de Operações Conjuntas da Resistência"). Essa rigidez ideológica impede escutar os mesmos intelectuais palestinos82 quando explicam que a clivagem fundamental não é entre seculares ou religiosos, esquerda ou direita, conservadores ou progressistas, mas entre quem resiste e quem colabora. E que na Palestina a gente apoia os que resistem, sejam nacionalistas, marxistas ou islamistas83.

A ausência da dimensão religiosa na maioria dos trabalhos e publicações que circulam em Abya Yala teve outra consequência negativa para a causa palestina: nesta região onde a cultura cristã é predominante, não se conhece a existência das pessoas e comunidades cristãs autóctones que são uma parte integral do povo palestino, que têm desempenhado papéis destacados na resistência de um século ao projeto sionista e que convivem pacificamente com a maioria muçulmana84. Trata-se de um ator incômodo porque desmente o discurso sionista segundo o qual Israel defende a civilização judaico-cristã ocidental contra o Islã violento; porque interpela duramente as igrejas ocidentais por seu silêncio ou cumplicidade com Israel; porque denuncia o sionismo cristão como "teologia do império"85 e lhe contrapõe sua teologia da libertação e decolonial baseada em duas chaves hermenêuticas: a terra e seu povo originário86.

Abraçar o caminho do boicote, desinvestimento e sanções

Em 2017 Omar Barghouti disse em Madri ante um grupo de ativistas: "Não temos mais tempo para a solidariedade simbólica". A oito anos, dois deles de genocídio acelerado, é ainda mais urgente dar o salto qualitativo para a solidariedade efetiva: só os boicotes, os desinvestimentos, as sanções e o isolamento internacional farão com que o preço de manter o status quo se torne insustentável para o regime israelense. Isso implica levar adiante campanhas do BDS em múltiplas frentes e conectar-se a nível regional e internacional para exercer uma pressão sustentada e eficaz.

Optar por este caminho supõe enterrar definitivamente o paradigma falaz do "processo de paz". Não é possível negociar com Israel --pelo menos nas condições atuais--; não só pela enorme assimetria de poder, mas porque seu longo histórico tem demonstrado que não negocia de boa fé, assassina os negociadores palestinos, não está disposto a ceder nada e não cumpre os acordos87.

O "Estado judaico" não vai permitir a existência de um suposto "Estado palestino" em nenhuma parte de "Eretz Israel" se não for obrigado a isso. E se o atual governo fascista fosse substituído por um mais moderado, o único que mudaria seria as aparências.88 Por isso o caminho para a solidariedade organizada é o da África do Sul: sem as sanções massivas, a pressão e o isolamento internacional que o converteram em um Estado pária, o regime racista não teria aceitado a libertação de Mandela e o desmantelamento do apartheid.

O que assinala Andressa Soares em relação ao Brasil vale para o trabalho de solidariedade e do BDS em toda Abya Yala: «O caminho a seguir requer uma maior organização interseccional; o trabalho constante com os sindicatos, movimentos estudantis e grupos ambientalistas e de defesa do território; a pressão constante sobre o Governo; uma maior coordenação regional; e uma estratégia de educação pública que desmonte a propaganda israelense.»89 

Illustration by Fourate Chahal El Rekaby

Illustration by Fourate Chahal El Rekaby

A história não terminou

É difícil concluir este trabalho no momento de maior incerteza para a causa palestina após a nova traição da chamada "comunidade internacional" que implica o aval da ONU ao plano imperial-colonial dos EUA e Israel para Gaza. Mais uma vez o povo palestino comprovou que sua libertação e sua autodeterminação não virão deste sistema internacional decadente e cada vez mais ilegítimo. Em troca, sabe que a justiça, a razão e a história seguem a estar de seu lado, enquanto o projeto sionista não tem futuro. E, sobretudo, tem aprendido nestes dois últimos anos que também os povos do mundo inteiro estamos com ele.

Qualquer análise ou prognóstico que não tenha em conta esse fator, assim como as enormes reservas morais e espirituais que tem demonstrado ter este povo para resistir durante mais de um século a um projeto colonial e genocida, estará equivocado. Nós, que temos conhecido de perto seu espírito inquebrantável apesar das reiteradas traições, temos olhado nos olhos de sua gente, a temos escutado e temos rido com ela tomando chá de maramiya sob as oliveiras ou junto aos escombros de suas casas destruídas, sabemos que este povo é invencível, que nunca deixará de resistir nem levantará a bandeira branca, e que perder a esperança é um luxo ao que não pode se dar. O que precisa de nós, os povos do mundo, é o compromisso de que nunca o abandonaremos: estaremos a seu lado até que a Palestina seja livre.

Deixemos que duas vozes jovens palestinas o digam com suas próprias palavras.

Qassam Muaddi (jornalista e escritor, Ramala): 

«Portanto, o desfecho desta situação dependerá do resto do mundo. Até que ponto os poderosos do Ocidente vão se agarrar a esse projeto colonial sionista? Até que ponto vão insistir que o povo palestino não tem lugar no mundo? A Palestina será livre, mas quando? (...) Minha geração ou a próxima terão que ver mais sofrimento e mais sangue antes que isso aconteça? Isso também depende do resto do mundo e não apenas de nós, que já demos tudo de nós. (...) Espero que a consciência que foi demonstrada nas ruas seja verdadeira e que os povos não se deixem enganar como aconteceu em Oslo. Espero que a solidariedade que irrompeu no mundo seja irreversível e que a mudança que começou na sequência deste genocídio não pare. Não apenas pela Palestina, mas pela humanidade. E disso dependerá o tipo de mundo que será o resto deste século e o próximo.”90

Israa Mansour (escritora e estudante, Gaza): 

«Somos filhas e filhos desta terra; aprendemos que resistir não é uma opção, mas um destino. (...) A esperança em Gaza não é uma eleição, é o que nos mantém vivos cada dia. É crer que esta terra, apesar de toda a destruição, florescerá um dia. Que os aviões se irão, que o som das explosões será só uma lembrança distante que contaremos a nossos netos como uma história de resistência. (...)Gaza permanecerá, mesmo que todas suas casas se convertam em escombros. Permanecerá em nossos corações, em nosso sangue, em cada palavra que temos escrito. Não fomos criadas para ser vencidas; fomos criadas para ser a testemunha eterna de que o ser humano é mais forte que a guerra. Feche agora esta página, mas lembre: a história ainda não terminou.»91

The opinions expressed in this article are solely those of the authors and do not necessarily reflect the views or positions of TNI.